terça-feira, 2 de outubro de 2012

A MARCHA DAS VADIAS


Tudo começou em Toronto, Canadá. Numa universidade, um policial palestrava sobre segurança no campus e afirmou que as estudantes do sexo feminino deveriam evitar se vestir como “vagabundas” ou “sluts”, para não serem vítimas de assédio sexual. As estudantes então resolveram protestar contra essa declaração. Pois o que está implícito é a cultura que responsabiliza a vítima feminina pela agressão e o conceito de mulher estuprável.  Quantas vezes já ouvimos: “usando aquele short estava pedindo para ser estuprada”? Acredite, isso não é um convite para me estuprar.
A primeira “Marcha das Vadias” aconteceu no início de maio e espalhou-se pelo mundo, mostrando que há muitas mulheres que não aceitam o controle social sobre seus corpos. No livro Promiscuidades (pg. 119), Naomi Wolf diz: “Em Roma, há dois mil anos, o fato de uma mulher beber mais do que um pouquinho de vinho poderia ter sido passível de punição legal já que seu comportamento sugeria liberdade sexual. Nós ainda consideramos que o comportamento “livre” por parte das mulheres deva provocar uma punição“.
Boston Slutwalk 2011. Foto de Nina Mashurova no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
No Brasil, haverá uma Marcha das Vadias no dia 04 de junho, na Praça do Ciclista, na Avenida Paulista – SP. No site oficial da SlutWalk Toronto, há depoimentos de mulheres contando suas experiências de violência, abandono e abusos. Historicamente o termo “vadia” carrega uma conotação extremamente negativa, cujo peso recai inteiramente sobre as mulheres, sendo uma séria acusação sobre seu caráter. A intenção por trás da palavra é sempre ferir. O objetivo da marcha é ressignificar o termo “slut”, apropriando-se e mostrando que numa sociedade machista todas somos vadias e vagabundas. No site, na aba Why explicam: “Estamos cansadas de sermos oprimidas pela vergonha, de sermos julgadas por nossa sexualidade e de nos sentirmos inseguras. Estar no comando de nossa vida sexual não significa que estamos nos abrindo para uma expectativa de violência, independentemente se fazemos sexo por prazer ou trabalho. Ninguém deve dizer que se eu gosto de sexo, estou abrindo um precedente para uma possível agressão sexual.
Entendo que o objetivo da “Marcha das Vadias” é dizer que as mulheres podem se vestir como querem, porque o problema não é a roupa, mas sim o estuprador. Porém, muitas discussões surgiram em nosso grupo: Uma marcha das vadias realmente funciona? A marcha ganha repercussão pela causa que está defendendo ou apenas pelas imagens de mulheres vestindo pouca roupa? Prostitutas fazem críticas ao movimento. E muitas se perguntam marchar ou não marchar? Para o debate deixo uma série de textos sobre o assunto:
Rebecca diz que “brincar de puta não é ser uma puta”. E sinceramente, não me considero qualificada para discordar dela. Nos estereotiparmos por algumas horas e chamarmos a essas mulheres de irmãs chega a ser de fato ofensivo. Não porque elas sejam inferiores a nós. Mas porque somos privilegiadas em relação a elas. Não somos nós que estamos sendo violentadas e espancadas diariamente nas esquinas. Claro, pode acontecer conosco, afinal temos uma vagina. Mas são elas quem correm o maior risco. Ao mesmo tempo em que acho importante defendermos nossa liberdade corporal e sexual até o fim, questiono se o método eficaz para isso seria nos transformando naquilo que nos objetifica e sexualiza de forma heteronormativa e comercial desde sempre.
E no texto Reconsiderações acerca da slutwalk pergunta:
Por que é tão fácil apoiar falsas putas (mulheres privilegiadas em roupas sensuais de acordo com o desejo do patriarcado objetificador) mas tão difícil apoiar a causa feminista quando fora dos padrões desejáveis, mesmo que lutem pelas mesmas coisas?
Os comentários de Paulo Maluf (com seu “estupra, mas não mata”) e do comediante Rafinha Bastos (sobre mulheres feias que deveriam agradecer pelo estupro) traduzem o raciocínio. Mas a SlutWalk vai além dos comentários machistas – como o da senhora que, ao ver Theresa Esconditto, 29, a caminho da marcha com “estou pedindo”, estampado no decote, reprovou. “Espero que esteja assim para uma peça de teatro.” Na marcha majoritariamente feminina, moças carregavam frases como “meu vestido não significa sim”. Uma participante tinha um cartaz dizendo ter sido estuprada aos 12 anos. “Estava usando agasalho largo e pantufas. Sou uma puta?”
Harsha Valia em Slutwalk – to march or not to march? afirma:
Slutwalk – com sua marca – corre o risco de facilitar o discurso dominante da “liberada” sendo essas apenas as mulheres que usam mini-saias e saltos altos em seu caminho para o trabalho. Na realidade, o capitalismo faz mediação na fachada feminista de escolha, criando toda uma indústria que mercantiliza a sexualidade da mulher por meio de produtos para sua auto-estima que vão de moda a beleza. A Slutwalk recusa sistematicamente qualquer ligação com o feminismo e foca apenas em questões liberais da escolha individual – o saboroso “Eu posso usar o que eu quero” um feminismo que é intencionalmente destituído de uma análise da dinâmica do poder.
Em Vamos importar a Marcha das Vadias, Maíra Kubik diz:
Vadia” é uma das muitas palavra que simboliza a opressão sobre a mulher. Demonstra o quanto a sociedade quer que permaneçamos “obedientes”, dentro das regras básicas de convívio. Segundo aqueles que a empregam, não podemos agressivas, indiscretas e muito menos libertárias. Não devemos provocar a “desordem” com nossas atitudes. É por isso que temos que importar a Marcha das Vadias! O Brasil precisa, com urgência, de um movimento como esse. No mínimo para contestar publicamente quem faz piada sobre estupro como quem fala do aumento do pãozinho francês. E, quiçá, para conseguir discutir de fato como, em pleno século XXI, a mulher ainda não é livre para fazer o que bem entender.
Essa espécie de protesto sempre vai atrair muito mais mídia que um seminário cheio de intelectuais depondo contra o sexismo, até porque as notícias, hoje em dia, preferem imagens a palavras. O problema é que, desta forma, além de nos expormos a marmanjos que avaliarão quais manifestantes “podem” se despir (essa vale a pena ver pelada, essa só deveria usar burca), estamos nos encaixando num dos papéis esperados das mulheres, o de objetos sexuais. E estamos também acostumando uma mídia cada vez mais preguiçosa a só dar destaque a ações políticas plenas de ativistas seminuas. É aquele velho dilema: os fins justificam os meios? Juro que não sei.
Melanie Klein em To Reclaim Slut or Not To Reclaim Slut: Is that the Question? decide apoiar a marcha:
E é aí que reside o cerne da questão. Somos feministas melhores ou piores se participarmos? Assim como a minha própria consciência feminista e meu ativismo mudou, os movimentos e ativistas também mudam. Na minha pesquisa sobre a SlutWalk, minhas opiniões cresceram e mudaram durante o trabalho. Eu estava particularmente inspirada por minhas conversas com a fundadora Heather Jarvis, que falava como uma pessoa empenhada na luta contra a injustiça, a franqueza de reconhecer os pontos fortes e fracos de seus esforços e a SlutWalk em geral. Também fiquei inspirada pela resposta da ativista feminista Zoe Nicholson (uma das seis mulheres que jejuou por 37 dias em 1982 para apoiar a Emenda dos Direitos Iguais). Apesar de reconhecer publicamente que ela não é um fã de carteirinha da SlutWalk e os mal-entendidos que isso gera, no final, ela falou em apoio e em solidariedade com todas as vítimas de violência. Ela afirma: “Toda vez que alguém agita, manifesta-se pela igualdade, os oponentes perdem um pouco de força no estrangulamento. Nenhum ato é muito pequeno.” No final, eu apoio e solidarizaro com a SlutWalk.
Apoiando ou não a Marcha das Vadias é sempre importante protestar contra a culpabilização da vítima. Nos casos de estupro, culturalmente as pessoas culpam mulheres pela violência que sofrem, tornando-as vítimas também da sociedade. Uma violência baseada na idéia de que quando uma mulher não se comporta, dentro de regras sociais machistas que definem quem é ou não é vadia, ela deve ser punida.

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